Oblíqua
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NOVOS TEMPOS

Diante da obra de Arte

Por: Caio Paduan
junho - 2023

É curioso que um dos maiores desafios que as obras de Arte coloquem a muitos espectadores seja sobre o seu significado. A insistente pergunta: “O que isso significa?” ou “O que o artista quis dizer com isso?”, não é apenas um clichê que permeia a relação com as obras de diferentes linguagens artísticas, mas uma angústia que muitas vezes impede qualquer tipo de relação com elas. Antes de qualquer coisa, para estes espectadores, é preciso resolver o significado para, assim, apaziguado o demônio da dúvida, saber em que mares se navega. Não é raro, que esse entendimento, o significado de ordem racional, seja a senha de acesso e, muitas vezes, também o início e fim da relação com as obras: ao descobrir o que uma trabalho artístico “quer dizer” adentramos em seu mistério, resolvemos a charada e... podemos passar para a próxima. A obra se reduziria à apreensão de seu significado racional, muitas vezes identificado como seu tema, restando muito pouco para ser revistado. Mas seria todas as proposições artísticas reduzíveis a essa noção de significado?

O problema do entendimento das obras de Arte é antigo e anda de braços dados com outra questão – essa de ordem ontológica – sobre as obras de arte que se apresenta na pergunta: “Isso é Arte?”. Não nos dedicaremos aqui a problemática (interessantíssima) dessa última questão, mas é interessante manter-se atento aos possíveis pontos de intersecção do nascimento destas perguntas. Entender diferentes obras tomando o significado como aspecto primordial esconde uma tensão pouco explorada em nosso entendimento sobre a relação com a Arte: a produção de sentido é uma construção conjunta entre a proposição do artista e a possibilidade de leitura do público frente à obra. O “significado” de uma obra – se é que existe um significado a ser descoberto – só é possível no encontro da materialização de uma produção artística com as possibilidades abertas pelos hábitos de leitura de um espectador. Isso quer dizer que ao nos preocuparmos com um possível significado como o primeiro problema de toda obra, já estamos, imediatamente, dentro de um modo específico de leitura. Se insistirmos neste mesmo modo diante de cada obra de arte, adotando um comportamento invariável na relação com a diversidade de proposições artísticas que existem no mundo da arte, estamos dizendo que a única intenção possível exploradas por artistas de diversas épocas é transmitir uma mensagem, dizer algo que pode ser reduzido a uma sequência lógica de frases que desvendariam o cerne da obra. Não parece, no entanto, um pouco estranho que toda história e produção das obras de Arte de todos os tempos seja reduzida a essa única chave de leitura?

Muitas vezes, a ineficácia dessa chave de leitura se desvela no contato imediato com as obras, evidenciando a impossibilidade de começar qualquer discurso sobre o significado da obra ou mesmo fazendo surgir discursos altamente questionáveis que, indubitavelmente, pouco se relacionam com as obras a que se referem. Mesmo assim, a culpa sobre essa impossibilidade discursiva parece recair inteiramente sobre a própria obra – considerada por estes espectadores hermética, difícil ou incapaz de se comunicar – para a qual se fecha qualquer possibilidade de relação.

Por mais que tenhamos a ilusão de um acesso ilimitado à informação por meio da internet, nossos modos de leitura, principalmente no que se refere ao mundo da Arte, não parecem encontrar uma maneira inequívoca de lidar com as obras desta área. Ainda que cada vez mais estejamos tenhamos disponíveis ideias e teorias sobre todos os assuntos possíveis à distância de um click, discutir um trabalho artístico ainda parece uma das questões mais complicadas nas sociedades de rápido acesso à informação. Isso acontece porque não apenas o mundo da Arte está em constante transformação de valores, referências e ideias, mas também nossa própria percepção está se transformando e gerando novos hábitos de leitura. O que nos traz o problema de uma tensão constante entre as propostas artísticas de nossa época e novos hábitos dos espectadores exercitados antes do encontro com essas obras.

As ideias sobre essa tensão não são novas. Dentre os diversos pesquisadores que vem enfatizando a construção de novos hábitos corporais e seus desdobramentos em diversas áreas podemos destacar os estudos de Helena Katz e Christine Greiner que, ao interseccionar a semiótica peirceana e as ciências cognitivas, ajudam a compreender os modos pelos quais alguns hábitos vão ganhando estabilidade e virando corpo à medida que são mais e mais exercitados no cotidiano. Mais especificamente, nos últimos anos, Helena Katz tem apontado como um tema inescapável na construção destes novos hábitos tudo aquilo que o nosso corpo exercita nos ambientes digitais, pois o número de horas de uso de aplicativos e redes sociais tem aumentado significativamente ano após ano. Nestes ambientes, os algoritmos desempenham um papel importante: é através deles que que novos conteúdos são mapeados, selecionados e propostos de maneira personalizada para cada pessoa segundo seus interesses. O problema que se desdobra desta seleção de conteúdo constante pelos algoritmos é a tendência que eles apresentam a reincidir em assuntos pelos quais cada usuário parece se interessar, procurando nos manter engajados no uso dos aplicativos e consumo de novos conteúdos. Porém, esse ciclo de repetição de mais do mesmo tem efeitos perigosos em nossa percepção: além de criar a impressão de obviedade dos assuntos que acessamos, pois eles são repetidos ao infinito, fazendo parecer que estamos sempre diante do assunto do momento, também vamos nos acostumando a um mesmo vocabulário e lógica de raciocínio que, pela insistência e repetição, vão ganhando estabilidade no corpo. Deste modo, aponta Helena Katz, vamos nos enredando na cultura do “Me, Myself and I”, que possui como característica principal a intolerância com a diferença, a impaciência e a formação de “bolhas” nas quais a troca de informações sempre pressupõe a concordância.

Mas o que isso tudo tem a ver com modo como nos relacionamos com as obras de Arte?

Nosso problema começa ao percebemos que somos o mesmo corpo que vai das redes sociais ao contato com obras de Arte, porém com muito mais exercício nas lógicas, temas e vocabulário das redes sociais do que do campo das Artes. Assim, usamos um conjunto de hábitos formados neste ambiente para dar conta de um outro nos quais as lógicas, temas e vocabulário não encontram correspondência exata. O que acontece é, deste modo, uma redução ou uma tentativa de enquadramento do mundo da Arte às lógicas e vocabulários das redes sociais. Podemos resumir essa questão na seguinte pergunta: quais são os hábitos que estamos exportando das redes sociais para a nossa fruição das obras de Arte?

Talvez a impaciência seja um dos aspectos mais marcantes que carregamos como marca destes novos tempos de hábitos digitais. Mas, diante das obras de Arte, a impaciência encontra um remetente muito direto: a impossibilidade do rápido entendimento racional da obra. Como apontamos no início do texto, não é novidade a tentativa de reduzir as obras de arte a uma explicação de ordem racional ou a um tema específico. Neste sentido, estamos diante de um hábito que não é exatamente novo. Porém, em épocas de “My, Myself and I” este hábito acaba por ganhar uma nova face: não apenas o enquadramento ao discurso racional se torna uma condição para lidar com as obras, mas ela deve ocorrer de imediato. É preciso não apenas reconhecer o tema das obras, mas reconhecer facilmente e rapidamente. De outro modo, como já apontamos, isso passa a ser um problema das obras – que rapidamente ganham os títulos de herméticas, difíceis e elitistas.

Três aspectos são bastante relevantes nesta nova faceta dos hábitos de fruição das obras de Arte. O primeiro deles é a rapidez na emissão dos juízos sobre as proposições artísticas. Não é difícil associar este hábito a aceleração de opiniões sobre tudo que acontece nos meios digitais. As redes sociais são movidas por assuntos do momento que no período de algumas horas já se modificam. Isso causa nos usuários das redes a necessidade de partilhar suas opiniões o mais rápido possível, antes que um novo assunto apareça. E, em tempos de cancelamentos e linchamentos virtuais, é preciso estar sempre se posicionando sobre diversos temas e acontecimentos e demarcando posições que não desapontem seus seguidores. Assim, mesmo sem muita análise, pesquisa ou reflexão, atos estes que inevitavelmente demandam tempo, o ambiente das redes sociais vai incentivando a formulação de respostas rápidas que acabam se baseando em informações rasas sobre aquilo que se discute ou mesmo em apenas impressões pessoais para a formulação de opiniões sobre tudo – desde a vida pessoal de celebridades à eventos de ordem política. De qualquer modo, o importante passa a ser o exercício constante de formular opiniões rapidamente antes que o tópico do momento seja substituído por outro. Essa opinião também possui como característica a assertividade sem rodeios, pois, além da rapidez, é preciso não deixar dúvidas sobre seu posicionamento que muitas vezes tem número de caracteres limitado.

Algo similar acaba ocorrendo na fruição das obras de Arte, que, por este exercício nas redes sociais, acabam por receber o mesmo tratamento: juízos rápidos e assertivos, como se as obras fossem os assuntos do momento discutidos nas redes sociais. Assim, o tempo justo para a fruição é substituído pelo tempo da urgência e impaciência das redes sociais.

Outro hábito das redes sociais que tem contaminado as relações com a obra de Arte é a existência e propagação dos explicadores. Esta nova categoria de “produtores de conteúdo” – uma classificação que reúne indiscriminadamente todos os criadores de vídeo, som ou imagem em plataformas digitais – oferece ao grande público explicações sobre os mais variados temas com o intuito de esclarecer os espectadores sobre os mais diversos assuntos – além de, obviamente, aumentar os seguidores e likes. Os explicadores se debruçam sobre os mais variados temas e constituem uma parte importante dos conteúdos de qualquer plataforma, já que esse tipo de conteúdo já foi normalizado e assimilado pelos usuários dessas plataformas. Não é mais estranho que pessoas que descobriram verdades na leitura de um determinado livro ou autor venham partilhar e explicar ao mundo conceitos difíceis: se um autor especialista precisou de 200 ou 300 páginas para explicar uma teoria ou conceito, cuidando de articular os problemas e contextos de sua proposta, não causa mais nenhuma estranheza que eles venham a ser resumidos em vídeos de 5 minutos por leitores  munidos de empolgação, mas, muitas vezes, absolutos principiantes na área ou assunto abordado.  Essas explicações por mais que também venham com advertências de que se trata de opiniões ou que pretendem apenas enriquecer o debate público sobre um determinado tema, acrescentando mais um ponto de vista, acabam por não cumprir exatamente essa função. Tanto o tom enfático de afirmações desses explicadores quanto o alcance de suas opiniões, que podemos inferir pelo número de seguidores e visualizações, não torna as opiniões apenas mais uma no meio de tantas. É bastante ingênuo acreditar que todas as vozes têm o mesmo peso nas plataformas digitais. Além disso, curiosamente, as opiniões mais enfáticas, que abusam de efeitos retóricos ou de apelos emocionais, são curiosamente aquelas que acabam tendo mais destaque ou marcando mais a memória de usuários dessas plataformas. Vale destacar também que quanto mais rápida a explicação, melhor. E, com esse alcance, os explicadores de ocasião, baseados em suas opiniões, acabam disputando o lugar de especialistas e pessoas mais habilitadas à determinadas discussões – que não poderiam, inclusive, ser reduzidas ao timing da internet sem perdas consideráveis. Caso o usuário também não esteja alinhando às ideias e opiniões de um determinado explicador, outro fenômeno curioso acontece: basta pausar o vídeo e buscar outro, pois existem muitos nas plataformas digitais. Assim, tem início também uma enorme confusão entre as noções de opinião e o juízo de um especialista ou estudioso de uma determinada área. A indiferenciação dessas duas instâncias, não só passa a prejudicar o debate público, como passou a ser uma estratégia muito utilizada para propagação de ideias infundadas e confusão em temas que muitas vezes são de caráter bastante sensível – como, por exemplo, no caso das desinformações sobre as vacinas e a COVID-19 propagadas no Brasil nos últimos tempos.

Os explicadores, deste modo, acabam assumindo uma função importante na mediação de temas complexos. Munidos de sua boa vontade e muitas opiniões, eles desenrolam temas complicados de uma maneira fácil e acessível para todos, virando uma ferramenta prática para qualquer coisa seja explicável. Essa facilidade – que encontra paralelos na atitude de “dar um Google” – ao invés de se tornar uma ferramenta para complementar estudos, pesquisas ou mesmo a formação de uma opinião própria, vira um fim, ou seja, ela é adotada como a resposta para as angústias do espectador sobre um determinado tema e, deste modo, vai também estabelecendo, pela repetição cotidiana, um novo hábito corporal. Esse hábito, ao adentrar no mundo da Arte, fortalece a necessidade constante de uma explicação racional que seja rápida, fácil e orientada aos meus interesses e perspectivas. E, se eu não estiver de acordo, procuramos – eu ou o algoritmo – algo que esteja mais alinhado aquilo em que acredito, num movimento curioso de responder segundo minhas próprias crenças e não segundo a qualidade da explicação.

O último aspecto que merece destaque sobre a importação dos hábitos das plataformas e redes sociais é a lógica e vocabulário utilizados pelos produtores de conteúdo. Associando os dois aspectos anteriores (os juízos rápidos e os explicadores de diferentes plataformas), encontramos, muitas vezes, nos conteúdos dos explicadores um vocabulário emprestado da Sociologia aplicado de uma maneira bastante peculiar. Se nestas áreas a proposição de conceitos e teorias procuram possibilitar perspectivas analíticas sobre determinados temas ou fenômenos complexos, na abordagem dos explicadores é o movimento inverso que prevalece: os fenômenos complexos passam a caber dentro dos conceitos e teorias a que são aplicados. Esta aplicação de conceitos e teorias, no entanto, não é possível sem antes um esvaziamento parcial ou completo deles próprios, pois para ter validade universal (e muitas vezes, anacrônica) é preciso que esse modo de utilizar conceitos e teorias tenha a uma flexibilidade infinita de aplicação, se referindo a tudo e a nada ao mesmo tempo, conforme convém a quem o utiliza. Em uma radicalização desse movimento, o conceito que deveria ser uma ferramenta de análise passa a ser compreendido como a “verdade revelada” sobre os fenômenos do mundo, retirando o conceito do campo das ciências e o deslocando para o território da crença. O prazer e trabalho envolvidos no desvendar do labirinto de complexidades de uma teoria, que inevitavelmente só é possível aos poucos, num processo de entendimentos e desentendimentos constantes, é substituído pela certeza da verdade, que não está aberta a críticas.

Deslocado para o campo das Artes, esse problema também ganha uma dimensão singular. A familiaridade com estes modos de utilização do vocabulário da Ciências Sociais (e não menos raramente da Filosofia, Psicologia, Antropologia, etc), tende a reduzir as obras e propostas artísticas unicamente a sua dimensão temática, valorizando assuntos que ilustram os conceitos e teorias que interessam ao espectador. Assim, as obras são criticadas unicamente pelo critério de representar os conceitos e teorias em que cada espectador acredita (pois, como já dizemos, as teorias já se encontram deslocadas ao território das crenças). Como um novo hábito, os espectadores passam a buscar pelo tema das obras e pressupor que eles devem não apenas concordar com suas crenças, mas também ilustrar de maneira exemplar estas mesmas crenças. Deste modo, muitas das outras questões possíveis que nascem da especificidade do campo das Artes são jogadas para escanteio, como, por exemplo: como a própria dimensão ideológica que se estabelece nos aspectos formais de uma obra em consonância ou dissonância com seu conteúdo; os aspectos sensíveis e dimensão experiencial da obra; ou ainda, sobre a própria importância na exploração da linguagem artística e dos problemas das Artes. Todos as questões de ordem estética ficam em um ponto cego das análises, comprometendo muito seriamente as opiniões e juízos emitidos por meio do vocabulário de apenas uma área específica.

Duas consequências se desdobram deste último hábito: o primeiro, que Arte estaria sempre subjugada a critérios advindos de outras áreas; e, segundo, que os Artistas não seriam capazes de formular ideias que escapam aos limites e temas que já foi teorizado pelas Ciências Sociais, restando-lhes a função de bons ilustradores de conceitos. No entanto, não é preciso muito esforço para perceber o absurdo dessas proposições. Não apenas as obras de Artes são capazes de formular ideias que intrigam e inspiram especialistas de diversas áreas do conhecimento, como também não há uma correlação direta entre ser um estudioso em Sociologia e tornar-se um grande crítico de Arte.

Quando buscamos nos relacionar com uma obra de Arte, seja um quadro, escultura, filme ou espetáculo cênico, portanto, se apresenta um problema em duas partes: a obra e o espectador que é cada um de nós. E, talvez, existam obras e artistas brincando exatamente com esse problema. Neste sentido, a obra não se dobra aos hábitos do espectador, mas busca provocá-lo ou convidá-lo a outros caminhos de fruição e, quem sabe, para novas possiblidades de entendimento, para novos hábitos.

Ora, mas qual seria a maneira ideal de ler uma obra de Arte, então? Seria uma resposta fácil dizer que a significação de uma obra é sempre relativa, que cada pessoa pode ler aquilo que bem entender segundo seu repertório – principalmente quando a obra não possui uma narrativa ou tema evidente. No entanto, isso pode ser novamente uma resposta muito fácil para um problema complexo – e que valeria por si só uma outra discussão inteira. Fiquemos, por enquanto, com a noção de que ler uma obra de Arte não é apenas um problema, mas dois. Diante da obra de Arte, duas questões: a obra (e seu mundo) e o espectador (e seu mundo também).

Caio Paduan

Ator e professor nas áreas de Teatro e Dança. Praticante de Kinomichi desde 2014. Leitor curioso das áreas de Sociologia, Antropologia e Filosofia, com especial interesse pela Escola de Kyoto, as obras de Martin Heidegger e filósofos da Ontologia Orientada aos Objetos (OOO). Também gosta muito de Literatura e Poesia – em especial as obras de Yukio Mishima, Virginia Woolf, Dora Ribeiro, Sophia de Mello Breyner, Octavio Paz e Federico Garcia Lorca. Ouve muita música – ainda coleciona CDs! – e assiste menos filmes do que gostaria, apesar de assinar muitos streamings. Acredita que reler, reassistir e revisitar as coisas que gosta é fundamental. Tenta sempre fazer mil coisas ao mesmo tempo. Às vezes consegue.