
Brincar de amar o mundo
Tudo parece ser uma grande brincadeira de faz de conta, mas, no fim, aquilo que Supernada-episódio 2 move é tão real quanto qualquer sonho: seja ele o mais material e com possibilidade de realização, a exemplo da justiça social; seja ele o mais onírico, que no despertar da imaginação, garante a oxigenação do que está estagnado. Nesta que é uma dança criada para as infâncias, o ato de brincar é algo sério e, por isso, também seriamente desempenhado.
Não é porque se trata de um trabalho destinado ao público infantil que algumas materialidades sofisticadas não podem ser exploradas. Supernada chama para brincar com elementos complexos e importantes, e que compõem o modo como percebemos e imaginamos as coisas do mundo. Apesar de parecer uma aproximação estranha e inusitada, o trabalho move algo semelhante àquilo que interessava a Antonin Artaud, importante figura para o teatro, para a poesia e para o cinema da primeira metade do século XX. Tanto em Artaud quanto em Supernada, os modos de perceber, formular e agir não se constroem a partir de algo dado a priori – como uma palavra proferida ou um gesto carregado de significados –, mas emergem das forças, densidades, asperezas e mutações do pensamento.
Em diversos trabalhos de Artaud, por exemplo:
“os verbos estão associados ao movimento do pensamento: reunir, cair, reter, compor, despir etc. O pensamento é descrito como processo de subir, compor, ou montar alguma coisa; ele não é mais um simples ato de representar ou imaginar algo, tampouco de exercer uma série de operações bem determinadas, mas o ato de construir a cada vez. O pensamento se encontra na densidade dos materiais, não sendo independente de um movimento do corpo, de seu arrepio” (Kuniichi Uno, em Artaud: pensamento e corpo, p. 25)
Supernada, então, de alguma maneira, conduz algo semelhante, porque brinca de movimentar o pensamento no e do corpo: não um que leva necessariamente à representação de uma coisa ou alguém, mas que, assim como os verbos mencionados na citação acima, parecem construir e desconstruir, cíclica e incessantemente, maneiras de lidar com as paisagens que se formam. O brincar, com isso, não se resume a brincar de alguma coisa ou com alguém; ele se expande para a chance de experienciar a surpresa e o encanto. Quase que paradoxalmente, é no gesto de paralisar – decorrente dos fenômenos de se surpreender e de se encantar – que se pode agenciar uma série de movimentos outros.
Em meio à atual desativação do exercício da contemplação, que é mercadológica e tecnologicamente controlada, Supernada pretende o contrário. Enquanto performance cênica, mostra que não há obrigatoriedade de se propor uma participação mais direta e efetiva para que, de fato, seja possível dela e com ela participar. O mero exercício de contemplar já é suficiente para que uma coletivização seja acionada, porque reativa aptidões que nos são caras e vitais, a exemplo do gesto de espantar-se e da experiência do deslumbramento. Deslumbramo-nos com pequenos gigantes em formato de melecas ambulantes; com monstros que dançam, sorriem e são abduzidos; com montanhas coloridas e com vulcões que estão à beira de uma erupção.
Supernada desenha e brinca com um território distópico. Aponta para um futuro alucinante, repleto de trincheiras multicores e paraquedas radiantes. O supernada super-herói veste capas mágicas, que alçam voo, mas que também nos teletransportam. Nesse outro lugar possível para onde vamos, as grandes ondas que inundam o espaço, ao encontrarem barreiras, dissipam-se eletromagneticamente, espalhando e propagando forças na imaginação.
Tudo isso só é possível porque, como já mencionado, nesse outro lugar as coisas não são dadas, mas o tempo todo construídas, descontruídas e reconstruídas. Não se trata da formulação de imagens que representam isso ou aquilo, ou que “querem dizer” uma coisa ou outra. Já na primeira cena, por exemplo, fica realçado que o que está em jogo é a força da ação, quando são saturados os diferentes ritmos de tudo o que compõe uma situação: os ritmos do som, do movimento, do espaço e das cores formulam formas e estados de presença – um traço dramatúrgico que, aliás, também está presente em Força Estranha, outro trabalho de Futura.
O Supernada brinca com a existência das possibilidades de existência. Incentiva, com isso, uma constante massagem da ação feita pela imaginação. Quem sabe o Supernada não é um herói cujos superpoderes consistem em desestabilizar os significados enclausurados, desarticular o que está amarrado, erodir terras infertilizadas para que nelas semeie-se alguma pulsação.
Diante de colapsos que se repetem e se intensificam, talvez nunca antes tenha sido tão urgente cultivar uma consciência radicalmente coletivizada, capaz de sustentar a continuidade do planeta e de todos os seres que nele coexistem. Para tanto, é indispensável assumirmos uma responsabilidade que não é desassociada de um amor pelo próprio mundo (um amor mundi, como diria Hannah Arendt). Como expressão desse amor, a educação daqueles que aqui estão e daqueles que estão por vir é ponto chave. Supernada, ao se dirigir para as infâncias, também se oferece como dança para o florescimento deste mundo. A preservação das pluralidades dos humanos, dos não-humanos e dos mais-que-humanos pode encontrar, nas ações e em linguagens poéticas, maneiras de manutenção e de transformação para garantir, de fato, aquilo que realmente importa.
Talvez, então, o exercício de agora seja o de procurar e cultivar as valências do mundo de agora e daquele que ainda está por vir.